Última alteração: 2022-10-07
Resumo Expandido (Entre 450 e 700 palavras)
As transformações tecnológicas e novos formatos globalizados de produção e circulação de produtos e informações, a partir das últimas décadas do século XX, provocaram rupturas em diversos aspectos da experiência cotidiana, inclusive a forma como o indivíduo se entretém, produz e consome conteúdo. A troca de informações passou a ser mediada por telas e as tecnologias digitais – as redes sociais e o streaming, por exemplo, – ganharam um protagonismo, alterando as maneiras de interação social.
Como um “sintoma” (Jost, 2012) de nossa época, as séries contariam sobre as aspirações e a vida do indivíduo de um determinado tempo, revelando as peculiaridades daquele momento histórico. É no contexto do século XXI que a série Clickbait, lançada em 2021 pela Netflix, está inserida, apresentando os dilemas e perigos do crime com origem no ambiente virtual e que é posto em xeque também pelas redes sociais. Não por acaso que o título da série é sugestivo: Clickbait, termo em inglês, que se refere a uma tática usada na internet para gerar tráfego online através de conteúdos enganosos (fake news) ou sensacionalistas, ou seja, os “caça-cliques”.
A pesquisadora Shoshana Zuboff (2019) cunhou o termo “capitalismo de vigilância” para designar um novo momento do capitalismo, em que dados são monetizados e são adquiridos por vigilância no ambiente virtual. Para Vera Follain de Figueiredo (2009), a partir das duas últimas décadas do século XX, “ganha proeminência a vertente de pensamento que minimiza o caráter referencial do discurso histórico, diluindo as fronteiras entre história, mito e ficção” (p. 131). Assim, a autora também explica como as micronarrativas se tornam um “recurso utilizado pelo indivíduo, em sua solidão existencial, para se conectar com o outro e para reatar os fios partidos das narrativas identitárias, assumindo-se como centro da definição do sentido de sua própria vida” (p. 134).
Ao analisar Clickbait, nosso foco estará na culpada pelo crime: a senhora Dawn Gleed, pois é quando ocorre a reviravolta na trama e o telespectador descobre que a criminosa é uma senhora aparentemente indefesa, mas que será a responsável por construir a narrativa ao impulsionar o crime. Podemos entender aqui a assassina como autora, que escolhe a vítima (Nick Brewer) e constrói sua personagem visando a se emocionar e existir, pois como defende Aubert e Haroche (2013) é através da narrativa que o indivíduo é visto, exibido e, assim, passa a existir.
Neste artigo, propomos a análise de Clickbait como um “sintoma” de nossa época, o que proporciona uma discussão metalinguística sobre o quanto a ficção produz e representa a realidade e também sobre o próprio tema da série, em que a criação de fake news, a partir de um catfish, interfere na vida cotidiana e o sensacionalismo de vídeos disseminados pelas redes sociais pode ser impulsionador de crimes reais. As discussões acerca do “falso narrador”, ou seja, as histórias que apresentam uma versão dos fatos e, em seguida, promovem reviravoltas que canalizam as verdades para outros caminhos remetem ao que Mikail Bakthin ([1929] 2008) diz quanto ao poder que se dá à palavra.
O que se conta é uma versão, não uma verdade. Logo, o que se revela como narrativa é, na melhor das hipóteses, uma possibilidade entre tantas verdades a serem esmiuçadas. A enunciação na perspectiva de Bakthin é a articulação da forma linguística com a sua empregabilidade prática, ou seja, é o encontro entre a possibilidade e os acordos para que se construa uma verdade compatível com a realidade. Mas nunca uma verdade fidedigna e absoluta. Essa visão dialógica sobre a construção de um discurso é bastante pertinente de ser trazida, já que estamos discutindo a criação de uma narrativa que pretende seduzir e se fazer visível ao outro, mesmo que no meio virtual. Ainda que nosso exemplo seja um objeto ficcional, é utilizada uma crítica necessária a estes tempos, vale lembrar que, conforme Bakthin ([1979] 2010), a língua é subjetiva, se constrói no discurso, o que desencadeia a intersubjetividade na interação com o outro.
Este trabalho buscará discutir a construção de discursos ditos como verdadeiros no meio virtual e a consequência destes a partir da proposta da série Clickbait.
Referências
Aubert, N.; Haroche, C. (2013). Tiranias da visibilidade: o visível e o invisível nassociedades contemporâneas. São Paulo: Fasp-Unifesp.
Bakhtin, M. (2008). Problemas da poética de Dostoiévski. 4ª ed. Trad. Paulo Bezerra.Rio de Janeiro: Forense Universitária.
_______. (2010). Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & JoãoEditores.
Figueiredo, V.L.F. (2009). Encenação da realidade: fim ou apogeu da ficção? Matrizes,ano 3, nº 1, ago./dez.
Jost, F. (2012). Do que as séries americanas são sintomas? Porto Alegre: EditoraSulina.
Shwartz, V. (2001). O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gostodo público pela realidade na Paris fim-de-século. In: Charney, L.; Schwartz, V. Ocinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify.
Zuboff, S. (2019). A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano nanova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca.